Como foi feita a ocupação urbana no Brasil?
Após o ano de 1500, as primeiras ocupações e criações das cidades foram historicamente controladas pela união entre o estado e a igreja católica, com a terra considerada “chão de deus”. Não é à toa que diversas cidades possuem nomes de santos.
No Brasil, as políticas fundiárias oficializadas pela lei de terras de 1850 não se restringiram ao campo, afetando também as cidades, mas, apesar de influenciada diretamente pelas injustiças de 1850, a ocupação das cidades foi feita de uma forma pouco mais complexa.
Antes da proclamação da república, em 1889, somente grandes vilas eram chamadas de cidades. Para a fundação de uma vila, primeiro era necessária a doação da terra para algum santo (doação para a igreja) que, antes de chegar a tornar-se vila ou freguesia, era denominada capela curada, que, ao crescer e preencher alguns requisitos, poderia ser promovida a freguesia ou paróquia. Já como freguesia, o pároco local ganhava a função de registros civis de casamento, nascimento e óbito da população. O estado outorgando suas funções a uma igreja é só mais uma prova concreta do conluio. As grandes freguesias, quando promovidas à condição de vila, ganhavam o poder de se autogerir, com a criação de uma câmara e permissão para cobrar impostos. Ao tornar-se vila, o poder público, muitas vezes, conflitava com a igreja católica, mas, em geral, no Brasil, a relação sempre foi extremamente harmoniosa, sempre aproximando-se de uma fusão. Dentro das vilas, existiam os rossios, que eram espaços desocupados, muitas vezes divididos em “chãos de terra”, uma espécie de lotes que eram destinados aos moradores para construírem suas casas, mediante pagamento anual, sob o sistema de aforamento, também chamado de emprazamento ou enfiteuse.
O pedido por terras era feito através das cartas de datas de terras, escritas de próprio punho. Os “municípios” (então vilas) e a igreja católica poderiam ceder as terras no sistema de aforamento. Neste sistema, quem ocupa as terras (foreiro) deve pagar ao “real dono” (chamado de senhorio) taxas chamadas foro e laudêmio, ainda hoje cobradas em determinados casos, como em terrenos da marinha ou em resquícios judiciários arcaicos cujos beneficiários são herdeiros de antigas políticas injustas ou mesmo a igreja. A PEC 39/2011, visa extinguir os terrenos da marinha, para que a especulação imobiliária avance sobre as últimas reversas naturais que ainda restam na costa brasileira.
Este sistema de aforamento foi convertido em direito adquirido no código civil de 1916, que se manteve em vigor até 2002, quando o novo código civil proibiu a formação de novos enfiteuses, sem extinguir os ainda existentes. Ainda hoje há grandes áreas pertencentes a velhos privilegiados (como a cidade de Petrópolis, cujos moradores pagam o laudêmio até hoje, século XXI), além de distritos inteiros sob o sistema de aforamento, como Cruz das Posses (em Ribeirão Preto/SP), que ainda pertence à igreja católica, fruto da política ultramontana e prova concreta da continuidade do conluio entre estado e igreja contra a maior parte da população que não tem onde morar.
Os atuais beneficiários oficiais da injustiça feita aos habitantes de Petrópolis são também descendentes do, há muito falecido, rei D. João VI. Eles ainda se consideram príncipes e princesas do Brasil, são beneficiários do laudêmio que os moradores pagam, mas, só retribuem com orações.
Após as centenas de mortes causadas pelas chuvas e pela precariedade das moradias em Petrópolis, antes de morrer em 2022, Dom Luiz de Orleans e Bragança, que ainda se considerava e se expressava como fosse um real príncipe do Brasil, veio tentar se desculpar nas redes sociais pela cobrança dizendo que já não recebe mais o laudêmio, pois, “Meu saudoso pai, o Príncipe Dom Pedro Henrique de Orleans e Bragança, Chefe da Casa Imperial do Brasil entre 1921 e 1981, vendeu todas as suas ações da dita Companhia Imobiliária ainda na década de 1940.”
Ele só “esqueceu” de informar que a beneficiária do laudêmio, a Companhia Imobiliária de Petrópolis (CIP), cujo presidente é Afonso de Bourbon de Orleans e Bragança, ainda é administrada pela família dele.
Já no caso de Cruz das Posses, a igreja se defende através do pároco de Cruz das Posses, arcebispo e monsenhor Ilson de Jesus Montanari dizendo que:
“É uma questão difícil. Pensamos em iniciar ações por usucapião, já que todas as pessoas estão lá há várias décadas, mas isso não é viável porque fica muito caro. Ainda estamos estudando uma medida legal”
Após exposição midiática sobre o caso, no fim do século passado, a fim de limpar a própria imagem, a igreja católica se absteve de continuar recebendo o laudêmio no caso de Cruz das Posses. Isso reforça a ideia de que a exposição das injustiças cometidas pela igreja é uma poderosa ferramenta para que elas cessem, assim como outras injustiças frequentemente cometidas por membros da igreja, como casos de pedofilia que a igreja agora declara tolerância zero para limpar a imagem da igreja, historicamente comprometida.
Na década de 60, quando o latifundiário e ex presidente João Goulart começou a falar em termos “proibidos” pelas elites como, reforma agrária e melhoria na educação, através de reformas de base, foi acusado de ser comunista (mesmo estando longe de ser) e sofreu um golpe de estado apoiado pelos EUA e pela igreja católica.
Em 19 de março de 1964 foi realizada a Marcha da Família com Deus pela liberdade e poucos dias depois foi dado um golpe. Como o Brasil normalmente se define como um país cristão, a marcha deu aparente apoio hegemônico popular ao que os golpistas chamaram de revolução, mesmo sem ter origem popular. Pelo contrário, a verdadeira origem veio do norte e remete ao mesmo clássico e simples golpe de estado praticado pelos EUA de forma quase idêntica em vários outros países, como no Chile, Argentina e Peru.
Na Marcha da Família com Deus pela liberdade, a palavra “liberdade”, que é normalmente associada a uma coisa boa, mascara a intenção de alguns grupos em manterem a liberdade de continuar a exploração do homem pelo homem, mantendo os privilégios da igreja e dos mais abastados, ou mesmo voltar ao tempo em que eles podiam comercializar, livremente, humanos escravizados.
Além da FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), uma das entidades organizadoras da marcha que deu suporte à realização do golpe deixa mais explícita a relação da igreja com o controle de terras, até mesmo adotando o termo propriedade em seu nome. A TFP (Tradição, Família e Propriedade) ainda hoje, século XXI, defende explicitamente a tradicional injustiça na questão de terras. Quem conhece minimamente a história sabe que, no que diz respeito a propriedades, a tradição brasileira não é nada boa.
Educação e terras são assuntos que as elites sabem que precisam controlar a fim de manter a escravidão tradicional, escravidão contemporânea ou qualquer outra denominação para a vasta oferta de mão de obra barata, também chamada de exército industrial de reserva. Muitos trabalhadores já devem ter ouvido a frase: se você não quer, tem outro que quer.
A primeira lei da educação (1837) que proibia expressamente “os escravos e os pretos africanos, ainda que sejam livres ou libertos” de frequentarem as escolas era somente mais explícita, mas, a tática de manter uma grande massa de pessoas intelectual e economicamente miseráveis continua, só está mais disfarçada. Os melhores cursos são mais caros ou possuem quantidade extremamente limitada de vagas públicas (como medicina). Além de continuarem as isenções de impostos aos templos, são concedidos ainda mais benefícios às pessoas físicas de alguns dos charlatões religiosos mais poderosos do Brasil.
A constituição brasileira de 1988 estabeleceu um prazo de 3 anos para que fossem revisadas todas áreas acima de 3 mil hectares no Brasil, através do Art. 51 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, porém, mais de 30 anos se passaram e nada foi feito a fim de que essa lei fosse cumprida, seja por governos que se alinham ao espectro da direita ou por governos que se dizem alinhados com a esquerda. A mais “recente”, modesta e principal política de “combate” à falta de moradia (o Minha Casa, Minha Vida) resulta em endividamento familiar, enquanto o Brasil poderia se espalhar em políticas comprovadamente mais bem sucedidas, como as realizadas no Uruguai, mesmo que não deixe as famílias de banqueiros tradicionais ainda mais ricas.
No contraditório sistema econômico vigente em pleno século XXI, muito é feito em prol de garantir o direito à propriedade privada, sob a ameaça de que qualquer outro sistema alternativo ao neoliberalismo irá aboli-la, mas, na prática, o que salta aos olhos (de quem quer ver) é o déficit habitacional coexistindo com latifúndios, além de famílias que, apesar de habitar a terra por muitos anos, não conseguem direito à escritura porque elas ainda pertencem a um santo. Mesmo sob o argumento de que a reforma agrária ajudou no desenvolvimento de economias capitalistas como as do Japão, EUA e França, a elite político-econômica e midiática brasileira nunca permitiu que ela ocorresse.
É sabido que o Brasil, felizmente, possui algumas áreas de preservação ambiental e que existem áreas inabitáveis, tornando difícil calcular perfeitamente uma distribuição justa de forma mais precisa, mas, uma simples “conta de padaria” pode mostrar um exemplo utópico que ajuda a dar uma noção da injustiça fundiária brasileira. Um território com 8.516.000 quilômetros quadrados (8,516x1012 m2), como o do Brasil, dividido por 214,3 milhões de habitantes daria 39.738,68 m2 de terras por habitante, não por família, ou seja, quase quarenta mil metros quadrados para cada habitante, mas, muitas famílias inteiras não possuem direito, na prática, a um único metro quadrado.
Essa condição é herança do passado. Seria bom se quem escreveu este artigo pudesse voltar e atualizá-lo dentro de alguns anos dizendo que a injustiça fundiária também virou coisa do passado, porém, nada indica que o déficit de moradias no Brasil chegará a se aproximar do zero, pelo menos a curto prazo, pois caminhamos no sentido da plutocracia. A exemplo prático de como o caminho é longo e o sentido é incerto, muitas das atuais decisões judiciais ainda dão ganho de causa à igreja como real proprietária, mesmo em casos de famílias que compraram o terreno da igreja e as elites financeiras ganham ainda mais poder através de medidas que vão na contramão da emancipação popular, como a “independência” do Banco Central do Brasil.