No Brasil, a atual lógica de privilégios e injustiças que impera desde a invasão portuguesa com suas caravelas é uma herança de um passado que ainda se faz bastante presente e vai muito além da polêmica privatização das praias, atual motivo das discussões entre Neymar e Luana Piovani. Essa lógica de acumulação fundiária apenas se transforma, mas, não é efetivamente combatida.
Descendentes das mesmas famílias relacionadas aos que levavam a “santa” cruz em suas velas, hoje estão economicamente a muitos zeros de distância de 90% da classe trabalhadora, que participa diretamente em praticamente tudo o que é produzido mas, está longe de possuir iates ou helicópteros e, muitas vezes, não possui direito nem mesmo a uma residência simples, mesmo trabalhando a vida toda “sob amparo” da constituição.
A constituição brasileira é clara quanto ao direito fundamental da moradia, mas, o próprio IPEA (órgão governamental) reconhece que é mais um direito só no papel e estima que faltam pelo menos 7,9 milhões de moradias só no Brasil.
Como as injustiças foram se transformando?
De 1530 a 1822, os portugueses e a igreja controlaram quem podia possuir terras através de um sistema chamado de sesmarias. Neste sistema, as terras eram transmitidas de pais para filhos, mas, pelo menos oficialmente, não podiam ser vendidas, pois, “pertenciam” à coroa portuguesa, com as sesmarias fazendo parte das capitanias hereditárias, que durou até 1821, já com o Brasil se preparando para declarar a independência de Portugal.
A partir de 1822, com a independência do Brasil e a abolição das sesmarias, surgiram muitos posseiros, que ocuparam terras de diferentes tamanhos, com enorme desorganização e sem limites claros, pois, os técnicos que mediam os terrenos eram raros e cobravam caro. Isso causou conflitos e debandada de escravos que enxergaram oportunidade fugir a fim de plantar e colher para consumo próprio, além de proletários que começaram a abandonar a exploração laboral utilizada pelos sesmeiros.
O breve período de “desordem” após a independência durou até 18/09/1850, quando o então imperador D. Pedro II assinou a famosa lei de terras, considerada um marco da injustiça na distribuição de terras, que culminou na oficialização do incentivo a poucos latifúndios no lugar da ocupação das terras do Brasil por diversos agricultores de famílias menores.
Em 1850, a população Brasileira era estimada em 8 milhões de pessoas, número equivalente ao atual déficit habitacional brasileiro estimado pelo IPEA. Ou seja, sobravam terras e a riqueza dos latifundiários era estimada pelo número de escravos. A partir da lei de terras e com a abolição se aproximando, a forma de medir as riquezas foi migrando do número de escravos para a quantidade de terras.
A elite política escolheu vetar o acesso à terra aos mais pobres
A discussão sobre a formulação lei de terras de 1850 explicita que o atual déficit habitacional foi ardilosamente arquitetado justamente para que a maior parte da população continuasse sem possuir nenhum metro quadrado de terra e fosse obrigada a trabalhar pros privilegiados, que não queriam perder a abundante mão de obra barata.
Da discussão sobre a lei de terras de 1850 participaram senadores latifundiários que ainda hoje são homenageados com seus nomes em ruas e avenidas por todo o Brasil, como o senador Vergueiro, senador Carneiro Leão e o senado Visconde de Abrantes.
A lei de 1850 deu anistia aos antigos sesmeiros que descumpriram a exigência de cultivar as sesmarias e forneceu escritura aos grandes posseiros que se assenhoraram de terras de forma “pacífica e sem contestação”. Já para os pequenos posseiros, o tratamento foi diferente. A “justificativa” para a não anistia dos pequenos posseiros foi dada pelo então Senador Clemente Pereira, do Pará:
— Sabe-se quantas vezes têm acontecido que homens que apenas levam consigo um bocado de farinha dentro de um saco e uma foice e um machado ao ombro têm se introduzido no interior dos matos virgens das fazendas ou matas devolutas da nação, derrubando e roçando, e se apresentado dizendo: “Esta terra é minha, porque dela tomei posse”. Não é possível que a lei consinta em tal absurdo. Fonte: Agência Senado
Duas semanas antes da aprovação da lei de terras e após os ingleses ameaçarem fechar os portos brasileiros, foi aprovada a lei Eusébio de Queirós, que reforçava a proibição do tráfico de escravos para o Brasil através de repressão a quem desobedecesse, visto que a proibição do tráfico pela lei Feijó, de 1831, ficou conhecida como lei “pra inglês ver”. Os latifundiários, com medo de perderem a força de trabalho dos escravos em um futuro próximo, que já caminhava para a abolição, reforçaram a pressão para que os mais pobres não tivessem acesso a nenhum pedaço de terra, pois, se todos tivessem a própria terra, ninguém aceitaria ser explorado pelos latifundiários. De fato, a então elite parasitária logo foi obrigada a recorrer à exploração de imigrantes, mas, nunca ao “absurdo” de trabalhar na própria terra para sobreviver.
A reação das elites à proibição do tráfico negreiro, através da lei de terras, foi oficializar a transformação das terras em mercadoria, fazendo com que o poder dos escravocratas, antes quantificado e simbolizado pelo número de escravos, fosse agora medido pela quantidade e qualidade das terras. As terras públicas agora passariam a ter um preço, mas, para os privilegiados, era de grande importância que o preço não fosse acessível a todos e funcionasse como garantia de que os exploradores continuassem com abundância de mão de obra barata, perpetuando a exploração até os tempos atuais.
Muitos acreditam que a desigualdade extrema no Brasil é algo natural e inevitável, mas, o planejamento da condição exploratória pode ser comprovado com a fala, dentre outras, do então senador e Visconde de Abrantes:
— O preço deve ser elevado para que qualquer proletário que só tenha a força do seu braço para trabalhar não se faça imediatamente proprietário comprando terras por vil preço. Ficando inibido de comprar terras, o trabalhador de necessidade tem de oferecer seu trabalho àquele que tiver capitais para as comprar e aproveitar. Fonte: Agência Senado
Além de fixar propositalmente preços impeditivos aos mais pobres, a lei de terras também especificou altas taxas aos pequenos posseiros, para que fossem expulsos das terras ao não conseguirem pagar as taxas, obrigando-os a oferecerem mão de obra nos latifúndios, normalmente cafezais.
Passaram-se mais de 170 anos desde a oficialização da escolha brasileira pelos latifúndios, mas, desde então, nenhuma medida realmente efetiva foi tomada a fim de reverter o erro histórico e permitir a todos que desejam praticar a agricultura familiar tenham esse direito.